O futuro animado:
a propósito da intervenção de Melinda Garcia no mundo.
A obra de Melinda Garcia apresenta-se como um todo organizado que busca abranger o mundo como um todo, de onde provém, estranhamente harmônico, o nome de “Holomovimento” que ela deu à sua prática artística. O filósofo Gaston Bachelard dizia que “não há ciência senão daquilo que está oculto” (1949, p. 38), e nós podemos dizer exatamente o mesmo sobre as artes em geral e as artes plásticas em particular, porquanto é bem àquilo que se refere a obra de Melinda Garcia.
O “oculto” é o que não aparece por si só, o que se deve ir procurar alhures, ou melhor, além (pois não se trata de esquecer nem de abolir o real, mas, em certo sentido, de atravessá-lo), o que se manifesta; é aquele Inconsciente do qual fala Melinda Garcia, descoberto por Sigmund Freud, que jamais se revela como tal, mas sempre por meio das suas manifestações, majoritariamente intempestivas, no latente ou no evidente, vindo ele romper a economia ou o equilíbrio destes, com o jogo de palavras, o lapso, o ato falho, a repetição obsessiva, etc.
Indo na esteira de Gaston Bachelard, o filósofo François Dagognet dizia, por sua vez, que “a ciência capta e torna visível o invisível” (1984, p. 221), e direi o mesmo, neste caso também, sobre a ação das artes. Elas tornam visível (quanto às artes plásticas, mas também audível, etc., quanto às demais artes) o que temos diante dos olhos e não sabemos enxergar por não termos ainda aprendido a enxergá-lo, conforme o diz bem o historiador das artes Ernst Gombrich: “o olho aprende”. E aqui nosso/a professor/a é o/a artista. Assim, a função das artes pode ser definida como o ato de fazer enxergar o que não se vê no que se olha.
Conforme o escreve Melinda Garcia: “O universo dessas imagens-símbolos do universal, as quais eu criei e organizei, corrobora uma ordem oculta que se apresenta evolutiva, irreversível e universal, a que chamei “Holomovimento”, isto é, uma ordem
implícita, velada em símbolos do movimento criativo”. Tal movimento “global”, que a artista designa como universal, declina-se em quatro movimentos que contribuem, cada qual de sua parte, para a construção de um universo que encontra a coerência em seu movimento ou sua dinâmica: uma primeira fase “figurativa”, em que a própria artista entra em cena num movimento de autodescoberta; a chamada fase “dos peixes e pássaros” que manifesta o movimento dialético do aprofundamento e da emergência, com o que simboliza o peixe cujo acrônimo, em grego, designa Cristo, e o pássaro que se liberta da gravidade, a fase “geométrica” que tange à dimensão psíquica do olhar, ou da apreensão de tudo, e, finalmente, a fase “orgânica” que oferece uma forma de síntese desse tudo cósmico.
Um plano ambicioso, que define bastante bem, feitas as contas, o procedimento artístico em geral. Conforme o indica bem o antropólogo Roger Bastide, retomando uma fórmula do sociólogo Jean Duvignaud: “Pode-se dizer que „a arte continua a dinâmica social por outros meios‟ que ele comenta: “Numa palavra, em vez de considerar o social como uma realidade estática, nós o consideramos como uma realidade dinâmica, e o produtor de arte é aquele que, pela potência de sua imaginação, desposa o movimento em vias de se fazer para perfazê-lo e fazê-lo significar a sua originalidade criativa. O artista reflete menos a sociedade do que aquilo que o faz engendrar todas as suas novidades.” (1977-1997, p. 93).
O que ele propõe aqui é um conceito da ação das artes que parte da realidade social, apoia-se nela, acompanha-a nessa dinâmica para tirar uma consequência possível e assim contribuir para essa dinâmica ao propor uma espécie de antecipação do movimento real em curso. Essa ideia, cujo desvio idealista nos cumpre evitar, significa que o artista vê, sente, pensa algo na realidade que os outros não viram nem sentiram nem pensaram ainda, mas sem cair, todavia, na ilusão romântica do artista criador de um mundo ex nihilo. Arthur Rimbaud e sua imagem do poeta como um “vidente” têm sido, com demasiada frequência, interpretados nesse sentido, enquanto, se lermos atentamente o texto integral da carta ao seu velho mestre, na qual essa ideia fica expressa, compreendemos que se trata de captar todas as experiências possíveis na realidade da existência para alimentar a sua imaginação.
O que caracteriza, pois, o artista é nem tanto estar inscrito numa realidade social, sendo este o destino comum de todos, artistas ou não, quanto saber e poder extrair dela alguma coisa que se encontre nela em seu estado latente, não prevista ou, em todo caso, não vista pelos outros, e que faça acessar uma realidade e seu conhecimento com sua ação. Nesse sentido, a obra de Melinda Garcia parece bem exemplar da “alma do futuro”, que é o tema desta exposição.
Bruno Péquignot,
Professor emérito de sociologia: Nova Sorbonne – Paris 3
Textos citados:
Bachelard Gaston : Le rationalisme appliqué (O racionalismo aplicado). PUF, Paris, 1949.
Bastide Roger : Art et société (Arte e sociedade). „1977) réédition Coll. Logiques Sociales, L‟Harmattan, Paris, 1997.
Dagognet François : Philosophie de l’image (Filosofia da imagem). Vrin, Paris, 1984. Rimbaud Arthur : Lettre « du voyant » (Carta “do vidente”). Lettre à Paul Démery, 15 mai 1871.